Tô fazendo uma oficina sobre processos criativos e o primeiro exercício foi estabelecer regras e processos que seguiríamos para conseguir ter uma rotina de escrita. A primeira que anotei na página em branco foi: ‘comprar um caderno e usá-lo.’ O uso do negrito já dá pistas da minha frustração: acumulo uma dívida gigantesca com o meio ambiente por todas as vezes que tentei ter um caderno/planner/diário e falhei. Não só por dificuldade de criar o hábito, mas também por me sentir meio ridícula nesses projetos. Nunca conseguia decidir o que era realmente digno de nota.
Eu andava em vias de desistir dessa regra antes mesmo de começar, quando a mãozinha do destino me encorajou a tirar da estante Rastejando até Belém, livro de ensaios de Joan Didion. Entre ótimos ensaios sobre a cultura estadunidense dos anos 1960, encontrei o texto Sobre ter um caderno. É um relato a respeito da utilidade de anotações pessoais para a autora. Joan defende que um caderno é, antes de tudo, um repositório do que você escolheu recortar da realidade, uma forma de se lembrar como você se sentia. Para ela, mais do que um lugar para escrever rotinas, frases elegantes ou ideias inteligentes, um caderno é um apanhado caótico da vida sem nenhuma pretensão. Cabe uma frase ouvida por acaso, uma receita, a descrição de uma cena. Tudo.
Não é como se ninguém nunca tivesse me dito isso, mas se eu precisava ser convencida de que ter um caderno importa na busca por uma vida mais criativa, ouvir a defesa apaixonada de Didion encerrou o caso. Tô indo em busca do meu - uma saga que tem se revelado complexa, já que cadernos pequenos e pautados são difíceis de encontrar -, mas se você também está em dúvida se começa ou não a escrever para si (ou pro mundo), ficam aqui alguns dos meus trechos favoritos do ensaio:
Veja o suficiente e anote, digo a mim mesma, e então certa manhã, quando o mundo parecer esgotado de surpresas, num dia em que estiver fazendo de forma mecânica aquilo que devo supostamente fazer, que é escrever - nessa manhã falida vou simplesmente abrir o meu caderno e lá estará um relato esquecido com juros acumulados, a fatura paga da passagem de volta para o mundo lá fora.
É um ponto difícil de admitir. Nossa criação vem de uma ética segundo a qual os outros, quaisquer outros, todos os outros são, por definição, mais interessantes do que nós mesmos, que fomos ensinados a ficar retraídos, a praticamente nos apagar. […] Só os muito jovens ou muito idosos estão autorizados a narrar seus sonhos no café da manhã, refletir sobre si, interromper os demais com lembranças sobre piqueniques na praia, vestidos florais favoritos, e da truta-arco íris num riacho perto de Colorado Springs. Do restante de nós se espera, e está certo que assim seja, que demonstremos entusiasmo pelos vestidos favoritos de outras pessoas, pelas trutas de outras pessoas.
E é o que fazemos. Mas nossos cadernos nos revelam, por mais respeitosos que sejam os registros do que vemos ao nosso redor, que o denominador comum de tudo o que vemos é sempre de forma transparente e desavergonhada, o implacável “eu". Não estamos aqui falando do tipo de caderno que está dedicado ao consumo público, uma pretensão estrutural de deixar encadernados uma série de pensamentos elegantes; estamos falando sobre algo privado, sobre pedaços de fios mentais muito curtos para usar, uma assemblage indiscriminada e errática que só faz sentido para quem as criou.
Tudo volta. Talvez seja difícil enxergar o valor de lembrar-se de si nesse estado de ânimo, mas eu enxergo. Acho que é aconselhável continuarmos aceitando as pessoas que um dia fomos, quer as consideremos companhias atraentes, quer não. Caso contrário, elas vão aparecer sem avisar e vão nos pegar de surpresa, batendo sem parar na porta da mente às quatro da manhã de uma noite maldormida, e exigindo saber quem as abandonou, quem as traiu, quem vai fazer as pazes. Nos esquecemos muito cedo das coisas que pensávamos que nunca esqueceríamos. […] É uma boa ideia, então, manter o contato, e acho que manter o contato é a principal função dos cadernos.
O QUE LI E INDICO EM MAIO:
Todo aprendizado termina em herpes, Marina Maria
Existem pessoas que colecionam imãs de geladeira, outras, discos. A Marina colecionava frases inusitadas que ouvia de amigos, colegas ou desconhecidos na rua. Durante uma oficina de escrita, decidiu fazer colagens com essas frases e montar os poemas que compõem esse livro. É uma leitura super divertida. 🧡
Se quiser acompanhar mais de perto o que a Marina publica, ela também tem uma newsletter, a Sal de Bolinha.
DIRETO DA PASTA DE SALVOS:
Quais são os melhores livros nacionais segundo o Chat GPT? A Lili Bailargé fez uma experiência muito legal com a ferramenta. Leia aqui.
Vem aí mais um livro da família Klink sobre navegações. Dessa vez, quem conta a história é a Tamara. Nós está em pré-venda pela Companhia das Letras.
Quais livros Patti Smith recomendaria para levar numa viagem? Aqui em vídeo. E aqui gentilmente organizado em texto por uma leitora da newsletter dela (pessoas que fazem isso tem todo meu 🧡).
A Camila Navarro, do blog Viaggiando, leu um livro de cada país do mundo e deu uma entrevista para o podcast 30:MIN. Terminei o episódio com vontade de um desafio um pouco menos ousado: “percorrer” os estados brasileiros lendo autoras contemporâneas. Pode ser que venha aí.
Ainda em clima de despedida de Rita Lee, uma notícia curiosa:
Seria “tweets escritos à mão” uma nova expressão para diário?